Contos da Estrada: O Caminhão Pipa
A cultura das estradas é tão rica que nem tudo o que se produz é publicado e acaba sendo apreciado pelo público. Alguns contos nordestinos que falam sobre o caminhão são um exemplo disso. Segue abaixo um conto nordestino, de autoria de Aparecido Galindo, que gentilmente cedeu o conteúdo para o nosso deleite:
O caminhão pipa
Aparecido Galindo
As latas já estava ali há uma semana. Algumas tombaram por causa do vento e outras foram chutada por algum desocupado. Nelas a poeira depositada pelo tempo lembrava a sede de toda uma Vila. Que tinha os olhos voltados para o céu e os ouvidos voltados para a velha estrada. Nenhum deles dava sinais de vida. O céu continuava lindo, não tinha sinal de nuvem a meses. Imenso e aterrador parecia querer engolir a Vila, com sua boca gigantesca. Pela estrada chegavam todas as notícias. Alegrias e tristeza pisavam nas mesmas pedras para irem até ali. Tudo vinha, menos àquilo que era o mais esperado. Genival abriu a venda. Não tinha lá muitas esperanças. Afinal, quem em sã consciência viria tomar cachaça? As prateleiras vazias lembravam que aquilo era o que sobrara de um comercio. Sentou na calçada. Hora imaginando os raros fregueses, hora de olho na estrada. O sol estava a pino, sem brisa que afaga-se sua barba poeirenta. Toda Vila ardia.
- A água ta chegando!
O filho de Lota passou gritando. Moleque ladino corria em um cavalo de pau. Sem camisa e descalço tinha a cara tingida de poeira e seus cabelos lembravam as touceiras do capim barba de bode.
- A água ta chegando!
Não parecia em nada com um anjo. Não tocava trombetas. Mas a sua passagem as portas iam se abrindo. Aquele povo ia colocando a cabeça para fora. Rostos furtivos, que insistiam em não acreditar. Aos poucos gente de toda cor, homem mulher e menino, corria para a sua lata. Genival deu um pulo. Na ponta da estrada uma grande nuvem de poeira vinha engolindo a Vila tragando casas e moradores. Um ronco de motor rebentou a poucos metros. Sim, era ele! Parou na pracinha. Aquela ruma de gente cercou o caminhão. A água que vazava da pipa, levantava da terra um cheiro de fartura. Há tempos esquecido.
- Vamos lá! Vamos organizar isso aqui!
O motorista pulou da cabina. O rapazinho que o ajudava, subiu como um gato na pipa. Foi logo desenrolando a gigantesca mangueira. O açude era distante e ainda tinha muitas viagens para fazer aquele dia. A situação exigia pressa.
- Tão esperando o quê? Façam uma fila!
As latas começaram a bater umas nas outras. Estavam acostumadas a ficarem ali, em seus lugares. Genival coçou a cabeça. Como diabos iam organizar uma fila aquelas alturas? Abandonou a porta da venda e entrou no meio da confusão. Aquilo era um desastre. Houve empurra, empurra. Gente falando que tinha a família maior, que havia criança pequena em casa... O rapazinho comandava a mangueira. Alheio as críticas, quando trocava de lata sem ter enchido totalmente a anterior. O dono da lata esbravejava. O motorista olhava meio torto. De chinelos de couro e camisa aberta, sua barriga encobria o cinto da bermuda desbotada. Um crucifixo balançava em seu peito suado. Reluzindo o Cristo, no sol implacável. Genival olhou para trás. A fila continuava a crescer. Já passava da capela de Santa Barbara. Os que conseguiam encher as latas corriam para suas casas e a derramavam as pressas no velho pote, que ficava marejando, saudoso dos dias de inverno. No passo que iam, voltavam, entrando no final da fila, na esperança de novamente serem agraciados. Um rabudo tentou beber um gole. Superou o medo das balieiras. Desceu na praça e saltitou até uma pequena poça de lama que se formara, com o vazamento da pipa. Má ao chegar restava apenas um pouco de lama. Voltando ao pé de algarobas, a ave piou triste. A pipa deu um grande estalo. Era um mau sinal! O povo sentiu um aperto no coração. Era um aviso. A água estava acabando. O motorista deu uma tapinha na barriga. Jogou a bituca do terceiro cigarro no chão. O rapazinho envergado pelo peso da mangueira mostrou-se satisfeito. Porém bem mais contido do que o seu patrão. Talvez não fosse seu dia. Pensou Genival ao ver a mangueira a poucas latas da sua. Os estalos eram cada vez mais constantes. Isso o inquietava. O rapazinho meou as duas últimas latas e repousou a mangueira na vasilha de Genival. Alguns pingos ainda caíram, mas o empregado olhou para o motorista, que orgulhosamente avisou:
- Acabou!
Ninguém disse palavra. Uma a uma as latas foram sendo recolhidas. Mangueira enrolada, velho motor ligado. Genival ainda viu o caminhão deixar a vila, levando atrás de si a mesma poeira que o trouxe. Quando esta abaixou, ao redor não existia nada, nada além de uma lata vazia no meio da rua.
Boa viagem!
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