Na época de maior desenvolvimento econômico, social e urbano do Brasil, os caminhões foram fundamentais não só no transporte de cargas, mas para inúmeras funções como até mesmo levar trabalhadores para canteiros de obras. Desde que os primeiros pesados chegaram por aqui, já ficou claro que seria para mudar a história. E, de fato, foi isso que aconteceu. Algumas fábricas de caminhões se tornaram símbolo desse período e uma delas é a FNM.
O desenvolvimento industrial brasileiro aconteceu lentamente e somente teve resultados após o fim de obstáculos e de medidas políticas, como nos governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubistchek, que foram imprescindíveis para que as indústrias se multiplicassem no Brasil. Pois, nos longos anos em que o território brasileiro foi colônia portuguesa, a economia se restringia à prática da agricultura conhecida como monocultura, isto é, o plantio de um único tipo de produto, como o açúcar.
No fim dos anos 40, o Brasil, como boa parte do planeta, mantinha uma frota envelhecida de carros, utilitários e caminhões americanos e europeus dos anos 30. A produção de matéria-prima e os fabricantes se voltavam para o esforço de guerra, com prioridade em fazer veículos militares. Só por volta dos anos 1950 que a indústria passaria a "andar" com as próprias rodas e a indústria automotiva se estabeleceu no país com grandes marcas estrangeiras chegando, além das que já exportavam veículos para cá. As primeiras, Ford e GM, seguidas por Mercedes-Benz e Volkswagen.
Mas, foi somente na terceira fase da industrialização do país, que ocorreu até 1955, que o governo e a classe burguesa fizeram altos investimentos no setor, adquirindo maquinários e melhorando o setor de transportes e energia, fator esse que tornou o país competitivo e apto para receber indústrias mundiais, integrando-se ao sistema capitalista global. Além disso, o governo do presidente Juscelino Kubitschek promoveu uma intensa abertura econômica no país para as empresas multinacionais, ampliando fortemente a entrada de novas empresas, em especial, do mercado automotivo.
Para o setor de transportes de cargas, esse período ficou marcado pela chegada de modelos pesados, projetados já com base na realidade brasileira: a de explorar terrenos. Os caminhões passaram a ser peça fundamental no dia a dia de diversos setores e impulsionaram a economia pelas estradas. Um dos símbolos desse desenvolvimento brasileiro é o caminhão FNM, especialmente o FNM D-11.000.
A Fábrica Nacional de Motores (FNM), também conhecida popularmente como “Fenemê”, foi a primeira fábrica de caminhões do Brasil. Antes deles, todos os caminhões que circulavam pelas ruas e estradas do país vinham de outros países, como é o caso da Inglaterra. Fundada em 1942, ainda durante o governo de Getúlio Vargas, a FNM revolucionou a história do automobilismo brasileiro, especialmente a história dos caminhões. Mas, a empresa foi muito além disso: em 1946, a FNM lançou o primeiro avião motor.
Localizada em Xerém, distrito do município de Duque de Caxias, no Estado do Rio de Janeiro, a Fábrica Nacional de Motores (FNM) foi construída pelo Estado Brasileiro, sob o rigor da disciplina militar e do apelo ao patriotismo. Foi um símbolo da nacionalização e responsável pela frota que desbravou os interiores do país, participando ativamente da construção de Brasília anos depois.
Inicialmente concebida como uma indústria de motores aeronáuticos, a empresa estatal passou, a partir de 1949, a fabricar caminhões e, posteriormente, automóveis. Seus vagarosos e resistentes caminhões ficaram conhecidos como “Fenemê” ou “João Bobo”, e seu automóvel ganhou o nome do presidente JK. Sua história estava entrelaçada com o desejo de parte da elite governamental, militar e empresarial de transformar o “homem brasileiro” em um “trabalhador brasileiro”.
Os rumos da empresa mudaram quando, nesse ano, finalmente a FNM assinou um contrato com a italiana Isotta Fraschini para a fabricação de seus caminhões no Brasil. Mas, por pouco, este acordo não foi o fim da tão conturbada história da FNM: a Isotta Fraschini, fundada em 1900 e por muitos anos importante fabricante de carros de luxo, saiu enfraquecida da Guerra, que acabou em 1945, produzindo apenas dois modelos de caminhões. O acordo com a FNM foi feito em concordata, ainda em 1948, e a empresa teve falência decretada em setembro do ano seguinte, meses após se juntar a FNM.
Mas, no Brasil, a chegada da Isotta Fraschini foi motivo de festa. O modelo que era produzido por aqui, o D.80, foi rebatizado FNM D-7300 e se tornou o primeiro caminhão fabricado no país: foram 200 unidades, montadas em menos de dois anos, já com 30% de componentes nacionais. O D-7300, (inicialmente nomeado R-80) era um modelo bicudo com motor a diesel e tinha arquitetura convencional, porém bem diferente da maioria da frota que circulava no Brasil, maciçamente composta por caminhões médios a gasolina, importados dos EUA.
Esses primeiros pesados nacionais FNM tinham capacidade para 7 t, motor diesel com injeção direta (seis cilindros, 7,3 l e 100 cv), caixa de cinco marchas e freios pneumáticos. Os primeiros FNM já apareceram com as grandes letras F, N e M afixadas sobre a grade do radiador, porém, essa não foi uma ideia brasileira: a empresa simplesmente replicava a Isotta Fraschini, que trazia as suas iniciais, com 30 cm de altura, colocadas em destaque na frente dos veículos.
Com a falência da Isotta, as negociações entre governo brasileiro e italiano encaminharam a FNM para um novo convênio de cooperação técnica, desta vez com outra fabricante de caminhões italianos, a Alfa-Romeo. O acordo foi firmado em julho de 1950 e através dele a empresa encontrou, definitivamente, seu caminho e mesmo passando por altos e baixos conseguiu conquistar seu lugar na história com o lendário e onipresente caminhão Fenemê, instrumento de desbravamento de novas fronteiras, símbolo da conquista do território brasileiro, o retrato mesmo, da luta pela industrialização e desenvolvimento.
O primeiro modelo fabricado no país, após o acordo com a Alfa Romeo, foi o D-9500, com capacidade para 8,1 t (ou 14,0 t, com reboque), motor diesel com injeção direta e 130 cv, eixo traseiro de dupla redução, oito marchas à frente e duas a ré e freios pneumáticos. Em paralelo com a produção de caminhões, a FNM também fabricava peças para suprir o mercado de reposição, inclusive da concorrência, fornecendo material para a Chevrolet, Ford e Willys. Além disso, desempenhou importante papel na formação do parque nacional de autopeças, prestando assistência técnica (e até mesmo financeira) à nascente indústria nacional de componentes.
Na primeira metade da década de 50, a empresa marcou presença em uma das iniciativas que mudariam a história dos transportes urbanos. Em 1955, desenvolveu com a Massari o projeto do “papa-filas”, reboque com carroceria de ônibus para 220 passageiros acoplado a um cavalo-mecânico, ingênua proposta de solução dos críticos problemas de transporte urbano das capitais brasileiras. A experiência funcionou bem em algumas capitais, mas, poucos anos depois, os ônibus biarticulados, como vemos hoje, começaram a surgir.
Nas estradas e no transporte de cargas, a presença dos caminhões FNM já era notada no cenário nacional: mesmo que os Fenemês representassem apenas 1,5% da frota brasileira de caminhões maciçamente de porte médio e a gasolina em 1956, a marca brasileira era líder no segmento de caminhões pesados a diesel, correspondendo a cerca de 20% deles. Mais significativa ainda era sua posição em números absolutos: a frota FNM já era superior, por exemplo, ao total de Mercedes-Benz e Volvos importados que circulavam no país.
Em 1958, foi lançado o modelo D-11000, mais potente e com maior capacidade (9,1 t ou reboque de 18 t), apresentado com três distâncias entre eixos, entre 3,60 e 4,40 m. O FNM D-11.000 era equipado com motor de seis cilindros e 150 cavalos. Embora nada tenha mudado esteticamente, o veículo trazia motor mais moderno, com bloco fundido em liga de alumínio, camisas removíveis e sete mancais. Ainda que só contasse com 27,2% de componentes importados, o D-11000 era anunciado como o caminhão com maior índice de nacionalização do país.
O FNM D-11.000 ganhou o “carinhoso” apelido de Barriga D’água, culpa de um vazamento de água no bloco que afetou muitos usuários. Estima-se que cerca de 30% dos modelos vendidos no primeiro ano tiveram esse problema, mas é importante mencionar que a FNM fez a troca dos motores, o que pode ter sido o primeiro recall do Brasil. A explicação é a seguinte: o bloco de alumínio, ainda fundido na Itália, tinha um problema de porosidade, que permitia a passagem da água de refrigeração para fora, ou então para o cárter, contaminando o óleo e fazendo o motor fundir (não havia um lugar específico para esse vazamento ocorrer, podendo ser em um ou mais pontos).
Mas, além da questão pontual do motor, um outro detalhe ainda mais curioso do D-11.000 era o cruzamento de marchas. Para cada uma das quatro marchas à frente, havia uma reduzida controlada em uma alavanca extra no painel. Mesmo com todas essas curiosidades, o FNM D-11000 teve grande sucesso inicial, elevando a produção de caminhões de 2.912 unidades, em 1958, para 3.990 no ano seguinte. O primeiro ano de produção do novo modelo foi também o melhor de toda a história da Fábrica Nacional de Motores.
Essa disposição causava um hábito recorrente: em algumas trocas, o motorista precisava tirar as duas mãos do volante, mas, na passagem da terceira para a quarta marcha reduzida, ele poderia usar a mão e o cotovelo ao mesmo tempo. Consegue imaginar a cena? Ter duas alavancas no câmbio fazia com que os Fenemês tivessem quatro marchas, mas, no fim das contas, possuíam oito faixas de velocidade: uma alavanca se move para cima e para baixo e a outra possui quatro posições possíveis.
Em 1960, a empresa atingiu a marca de 15.000 caminhões fabricados no país, com sua fábrica em processo de modernização e ampliação. Este, porém, seria o ápice da empresa: a partir daí, começaria a recuar no mercado de caminhões e sucumbiria frente aos novos e inovadores concorrentes nacionais com produtos tecnologicamente muito mais modernos, como o Scania-Vabis e Mercedes-Benz.
De 1958 a 1962, pouco foi mudado na gama de modelos, praticamente fixada em 1960, quando saiu a 2ª série do D-11000, com a cabine padrão, identificada pela nova posição das lanternas dianteiras, deslocadas para o lado dos faróis e pelas aberturas basculantes para ventilação interna. Numa das primeiras privatizações do país, em 1968, durante o regime militar, a FNM foi privatizada e passou a ser controlada pela italiana Alfa-Romeo.
Com isso, em 1972, dois novos modelos foram lançados, o FNM 180 e 210, que finalmente ganharam nova cabine. Mas, a empresa há alguns anos já vinha apresentando dificuldades de acompanhar o mercado e, em 1973, a FIAT comprou 43% das ações da Alfa-Romeo. Mesmo ainda fabricando os últimos modelos FNM, ao se iniciar 1977, toda a linha de caminhões Fenemê já era anunciada como Fiat. Em junho, a razão social da empresa foi oficialmente mudada para Fiat Diesel Brasil S.A. Em 1979, substituiu os modelos anteriores pelo Fiat 190.
Os caminhões FNM são parte da história do país, da indústria automobilística e dos caminhões no Brasil. Eles se tornaram lendários nas estradas e também na memória de todos os que viveram naquela época. Por essa razão, os caminhões da Fábrica Nacional de Motores (FNM) tiveram sua história contada no livro “FNM – A força brasileira nas estradas”. Além disso, atualmente, a estrutura da antiga Fábrica da FNM está tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional. A história do Fenemê é um grande patrimônio para o nosso país e merece ser sempre lembrada, independentemente da geração de amantes de pesados.
E você estradeiro, é do tempo dos Fenemês? Chegou a ver um desses clássicos de perto? Teve algum FNM que marcou sua vida? Então, que tal não deixar que essa importante memória seja esquecida e compartilhar esse texto com seus amigos do trecho? Até a próxima!
Pamela Emerich
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